19 de Mar de 2024

Ele era técnico agrícola até sofrer acidente e perder 100% da visão; por necessidade, aprendeu o ofício e cria peças apenas com o tato

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O caminhão de madeira é uma das peças que o marceneiro mais gosta de produzir. (Fotos: Marcos Ermínio)

Muita gente custa a acreditar que Erotides realmente não enxerga nada. Chegam a ir até sua casa só pra vê-lo trabalhar. Só assim, vendo com os próprios olhos, se convencem que o senhor de 70 anos, de jeito simples e muito sincero, é de fato um habilidoso e experiente marceneiro com deficiência visual. Apenas com o tato e a sensibilidade das mãos, ele produz bancos, mesas, cadeiras, brinquedos, porta-espetos, cabideiros e até itens de decoração, com detalhes minuciosos. Usa do maquinário profissional, como qualquer outro, e jura que nunca se machucou. "Nunca perdi uma peça", acrescenta, com orgulho. "É verdade mesmo", logo confirma sua esposa, Cleusa Araújo Soares.

O marceneiro perdeu a visão em um acidente, em 1982, quando dirigia um caminhão na saída para São Paulo. De Santa Catarina, veio para Campo Grande trabalhar como técnico agrícola, atraído por uma ótima oferta de salário. "Eu vim para ganhar 5 vezes mais. Mas perdi tudo", lamenta. Na rodovia, um outro caminhão saiu da pista e bateu de frente com Erotides. Entre vários ossos quebrados, veio a surpresa até para os médicos: a bateria do veículo vazou no rosto do motorista e queimou seus olhos. Foram mais de 20 dias em coma e depois mais dois anos sem aceitar a cegueira.

"Chorei dois anos, até conhecer o Instituto para Cegos. Aprendi muito lá, a fazer artesanato, trabalhos manuais", explica. "Eu vi que não era o único que não enxergava", resume Erotides, quando perguntado sobre como foi o processo de aceitar a nova condição.

Mas os problemas continuavam, já que Erotides precisava trabalhar e ganhar dinheiro. Tinha filhos pra sustentar e não conseguia mais oportunidades como técnico agrícola. "E os artesanatos não davam dinheiro", explica. Surgiu a ideia de trabalhar com algo maior, como móveis. "Mas ninguém me ensinava o ofício. Fui em Senac, Instituto para Cegos, todo lugar, ninguém me ensinava".

Então ele decidiu aprender sozinho. Montou seu espaço e, apenas com o tato e a vontade de aprender, criou suas peças de madeiras. Deu tão certo que não parou mais, desde os anos 90. Suas peças são encomendadas por quem já conhece seu trabalho e também são vendidas na banca da esposa, na Feira Central, por gente que nem imagina que foram produzidas por uma pessoa cega. Uma peça de decoração, por exemplo, a casinha com vários detalhes e mimos, custa cerca de R$ 97,00, e os clientes gostam bastante, garante Cleusa.

Ele passa o dia todo criando, produzindo, medindo cada pedaço de madeira. "Já me falaram: 'pra quê um cego tem uma régua no bolso'?", recorda, e logo tira a régua e mostra como vai medindo seus materiais.

Discriminação

O ateliê de Erotides fica no fundos da casa do casal. É lá dentro que ele se sente feliz e seguro, longe das discriminações do mundo exterior. "Se eu te contar, você não acredita", diz Cleusa, sobre a rejeição que uma pessoa com deficiência visual pode sofrer nas ruas. "Fazem careta, se afastam... sou eu que vejo tudo", ela completa.

"Uma vez fui numa numa banca da feira pedir uma rapadura. A mulher me ouviu e virou às costas, nem me respondeu. Achou que eu estivesse pedindo, acham que sou pedinte, só porque sou cego", acrescenta Erotides.

O marceneiro era ativo na comunidade religiosa do bairro, mas largou mão, pois não era convidado para as viagens e compromissos mais importantes. "É assim mesmo, tenho vários amigos que passam por isso todo dia", diz, com tranquilidade, conformado com uma realidade que não consegue mudar sozinho. Apesar das dificuldades, ele segue no seu mundo de criações e de barreiras que são sempre superadas.

 

 

 

 

Fonte:https://www.campograndenews.com.br